segunda-feira, novembro 11, 2013

O Adeus à D. Maria dos Anjos

De: http://jorgemiguelcs.wordpress.com/tag/esperanca/
A D. Maria dos Anjos foi uma pessoa, também com leucemia, que acompanhou sempre a minha mãe. Desde a entrada com direito a estadia pelos corredores, passando pelo quarto onde estava uma pessoa incapacitada, que não conseguia falar e por isso estava sempre a gritar, tanto de noite como de dia, até à mudança para a ala só de hematologia. Neste processo todo, só uma vez ficaram em quartos separados. Mas nunca deixaram de se preocupar uma com a outra. (E nesta vez, o quarto que coube à minha mãe viu morrer as outras três pessoas que o dividiam com ela... não é fácil olhar para a morte todos os dias, especialmente quando se está tão fraca).

A irmã da D. Maria dos Anjos ia visitá-la todos os dias e estava com ela o tempo que podia, muitas vezes, e tal como eu e a minha irmã, durante a totalidade do período da visita. Sempre fez questão de saber como estavam as outras pessoas do mesmo quarto, com especial atenção para a minha mãe uma vez que ela e a D. Maria dos Anjos tinham criado um elo especial devido ao seu percurso semelhante dentro do hospital. Mesmo quando estiveram em quartos diferentes, a irmã da D. Maria dos Anjos fazia questão de fazer sempre uma breve visita à minha mãe para saber como ela estava. E o mesmo fazíamos eu e a minha irmã, íamos sempre ao pé da D. Maria dos Anjos saber como ela estava.

A D. Maria dos Anjos raramente vomitava e conseguiu sempre comer. As pessoas são mesmo assim, nem sempre reagem da mesma forma a tratamento semelhante. Na verdade, não tenho a certeza se o tipo de leucemia dela era o mesmo que o da minha mãe (creio que sim) mas ela reagiu sempre de modo diferente. Infelizmente várias vezes tinha sangue nas fezes e nem sempre se sentia bem, também ela estava muito fraca mas a conseguir aguentar a quimioterapia.

De: http://jorgemiguelcs.wordpress.com/tag/esperanca/
Depois de algum tempo na ala de hematologia, a D. Maria dos Anjos teve uma grande infecção que levou ao adiamento da quimioterapia seguinte. Primeiro combateu-se a infecção pois o organismo já está fraco devido à quimioterapia pelo que se houver infecção, provavelmente o corpo não aguentará a quimioterapia.

A D. Maria dos Anjos melhorava de dia para dia, ainda que estivesse muito cansada e sem forças. Quando, finalmente, se pode avançar para a quimioterapia, ela resistiu bem aos primeiros dias mas depois as coisas pioraram e houve uma reviravolta enorme. Voltou a ter infecção (talvez ainda tivesse resquícios da anterior) e o corpo e a medicina não conseguiram combatê-la. De um dia para o outro, os órgãos começaram a entrar em falência e o cancro a espalhar-se, não havia nada a fazer, era uma questão de horas até ao fim.

Posso dizer que visitei a minha mãe no último dia de vida da D. Maria dos Anjos e os médicos e enfermeiros fizeram tudo o que podiam por ela, sou testemunha disso, e quando nada mais havia a fazer, fizeram tudo o que estava ao alcance deles para que as suas últimas horas fossem passadas no maior conforto possível, chegando até a trazer mantas eléctricas para que ela se mantivesse mais quente uma vez que estava praticamente gelada.

O marido da D. Maria dos Anjos mal conseguia enfrentar esta realidade. A irmã dela nunca deixou a porta do quarto, se ia perder a irmã, pelo menos acompanhava-a o máximo que pudesse. Nesse dia uma tia minha visitou a minha mãe e quando viu a irmã da D. Maria dos Anjos dirigiu-lhe palavras de esperança mas eu cortei-lhe a frase e indiquei-lhe que devia ir ver a minha mãe. Estas palavras de esperança não ajudam quando se sabe que o fim é certo. Restou-me dar algumas palavras de apoio e desejar que ultrapassassem este período o melhor que pudessem. Agradeci-lhe ainda tudo o que a D. Maria dos Anjos e ela tinham feito pela minha mãe, ao importarem-se com ela, ao dirigirem-lhe todos os dias palavras de incentivo.

Nessa madrugada, a D. Maria dos Anjos faleceu. No outro dia, pedi à pessoa da recepção para dar o meu contacto à irmã da D. Maria dos Anjos porque gostaria de estar no seu funeral. Na verdade, ela nunca me ligou, nem sei sequer se ligou para o hospital e chegou a saber que eu tinha deixado o meu contacto. Mas percebo-a completamente, os dias passados naqueles corredores são muito difíceis de ultrapassar e na hora da maior dor, a morte da irmã, percebo que tenha sido ainda mais difícil pensar em qualquer pessoa que lhe lembrasse a doença que tinha levado a sua irmã.

(Ainda hoje, passados dois anos e meio, nem a minha mãe nem nós conseguimos ainda voltar ao piso da hematologia, por isso compreendemos perfeitamente o que sentiram, uma vez que os desfecho da D. Maria dos Anjos foi ainda pior que o da nossa mãe).

sexta-feira, novembro 08, 2013

Um dia de cada vez

Felizmente aquele adeus não se verificou ser o fim. Pouco a pouco, e com muito custo, ela voltou a falar... e a dizer que não tinha força nas pernas. Durante dias, talvez semanas, foi ignorada por médicos e enfermeiros que diziam apenas que as pessoas ficam fracas depois da quimioterapia e que muitos não reagem e deixam-se ficar simplesmente como se fossem apenas pessoas que não quisessem continuar. É verdade que isso pode acontecer, já aqui indiquei que a quimioterapia corrói a pessoa, vai-a destruindo até restar pouco mas é a única que também pode salvá-la, extinguindo o cancro.

Sem que nós soubéssemos, a minha mãe caía 2 a 3 vezes ao dia pois como os enfermeiros e auxiliares pensavam apenas que ela estava a ser preguiçosa e a não querer mexer-se, quando iam levantá-la ia apenas uma pessoa e acabava por deixá-la cair. No meio do nosso desespero, só mais tarde viemos a saber o que tinha acontecido e ficámos revoltadíssimas, quisemos fazer queixa mas a minha mãe não quis, tinha medo que ainda fosse pior pois era ela que tinha de ali estar e lidar diariamente com aquelas pessoas... é muito triste a pessoa ver-se tão mal e à sua volta não haver humanidade suficiente para perceber que estes doentes (ainda que não tivessem mais nada para além da leucemia) são doentes com os quais é necessário ter ainda mais tacto e ajudar no que for possível para que possam aguentar o processo terrorista de uma quimioterapia. Ali, conheci pessoas fantásticas, que realmente se preocupavam, mas conheci também auxiliares que pensavam estar a tratar com objectos, desde deixarem a minha mãe cair, até não a ajudarem a limpar-se quando fazia as suas necessidades... é muito triste que estas pessoas trabalhem num hospital e, principalmente, numa ala de oncologia, onde as pessoas chegam a estar completamente dependentes delas.

Todas as semanas falávamos com as enfermeiras e elas nos diziam que ela devia estar fraca da quimioterapia e que não estava a querer levantar-se. Sempre lhes disse que a minha mãe não era assim, sempre fez tudo e mais alguma coisa sozinha, não é pessoa de pedir aos outros, se puder fazer. Aliás, só nas piores alturas, em que não conseguia segurar o prato da sopa é que éramos nós a dar-lha pois, enquanto conseguiu, fez questão de o fazer ela própria.

Entretanto, de uma vez por todas, chegou-se à conclusão que o que a minha mãe tinha era alguma coisa para além dos efeitos da quimioterapia e foi chamada uma médica da medicina física e reabilitação e da neurologia. A primeira boa (?) notícia que nos deu, passados alguns exames, era que tinham pensado que poderia ser um segundo cancro mas que já tinham despistado essa hipótese... a conclusão que tinha a dar-nos era que a quimioterapia tinha matado não só as células cancerígenas como tinha feito o mesmo aos músculos e que a minha mãe iria levar 6 meses a 1 ano a voltar a andar... a minha mãe ficou em pânico, mais depressiva ainda, pois não conseguia ver-se agarrada a uma cama e dependente por tanto tempo. 

Depois do diagnóstico, começou a fazer fisioterapia mas, acredito que se tivesse sido diagnostica antes (em vez de ignorada), talvez nunca tivesse perdido a faculdade de locomoção. Com este diagnóstico foi-nos ainda indicado que ela não poderia fazer mais quimioterapia nem o transplante (que é antecedido por uma quimioterapia diferente) para que ela não perdesse completamente as suas faculdades e que este diagnóstico seria revisto mais tarde. 

Por um lado, ela poderia tornar-se um vegetal, por outro poderia morrer se a leucemia voltasse ao grau inicial... não sabíamos para onde nos virar, nem a própria médica dela, teríamos de esperar para ver como seria a evolução.